fotos: Sebastião Salgado

terça-feira, 5 de junho de 2007

Guerreiro



Luiz Carlos Sá

Quando eu era apenas um menino e crescia dentro da favela, jamais pensei levar um tiro. Na minha cabeça de criança, se isso acontecesse, seria por envolvimento com o tráfico ou por uma bala perdida, em confronto entre polícia e bandidos. Agora, aqui estou eu, caído nesta viela, com projéteis fazendo parte do meu corpo. Minha alma ainda está no corpo, estou preso a ele, não sou livre.
A escuridão é da noite, não dos meus olhos; eles nunca estiveram tão abertos. São olhos de homem feito, forjado e cinzelado pela vida, mas o menino ressurge através das lembranças. Não consigo evitar.
Ouço o chamado de Vómaria:
“Baiano! Oh, Baiano! Onde se meteu esse diacho de moleque?”
Ah! Favela. Naquele tempo não era comunidade ou bairro de população carente. O discurso político não estava introduzido na boca dos moradores. Éramos favelados, excluídos sem consciência. Hoje, temos. Pelo menos uma boa parcela tem.
“Garoto arteiro. Quando eu botar a mão nesse sem vergonha, ele vai ver só...”
“Calma, Maria! O menino deve estar no campinho jogando bola, daqui a pouco aparece.”
“Humm, sei! Ele vai é levar umas boas varadas. Zefa, você já cansou de ver um monte de desocupados, fumando aqueles cigarros fedidos na beira do campo, ou é cega?”
“Claro que já, Vómaria! Mas Baiano é ajuizado, só tá querendo brincar....”
“Continuando assim, levando a vida na brincadeira, não será nada na vida. Vai continuar morando aqui e a gente sabe muito bem qual é o final.”
“Vira essa boca pra lá dona Maria. Eu hein! Parece que aqui na favela só existe bandido e...”
“Pois bem, é melhor dizer cuidado agora, pra não dizer coitado mais tarde.”
Minha Vómaria era respeitada na comunidade pela sua maneira de falar francamente o que pensa e também por ser a parteira da favela. Perdeu as contas do número de crianças que trouxe a este mundo. Devido a este respeito, seus berros logo chegaram aos meus ouvidos através do aviso do Piranha.
“Baiano. Oh, Baiano! Vómaria tá te chamando... Parece que tá braba feito o cachorro do seu Coelho da Folia. Larga esse jogo e vai pra casa. Deixa eu jogar no seu lugar...”
“Não. O Piranha, não... Ele é muito ruim! – gritaram todos do meu time – É melhor parar o jogo!.”
“Pô, eu não sou tão ruim assim ...” – saiu o coitado reclamando.
Quando minha Vó chamava era melhor correr. E foi o que fiz, botei vinte no veado e corri ao seu encontro.
“Meu filho, você está atrasado pra escola. Desse jeito como vai ser alguém na vida. Fica o tempo todo naquele campinho jogando bola. E os trabalhos da escola, você já fez?”
“Claro, Vó.”
Ela abriu o seu sorriso branco e largo que iluminava todo o seu rosto com um brilho mais forte que o do Sol, que me cegava quando soltava minhas pipas. Gostaria de ter seus braços agora em volta de mim e o brilho do seu sorriso clareando está noite, como ela fez quando chorei de noite, por não ter mãe. Mãe mesmo, para levar à festa do Dia das Mães na escola. Minha morreu quando eu nasci. Vómaria me trouxe ao mundo. Ele levou minha mãe. Meu pai, vi poucas vezes. A última notícia é que estava preso novamente.
Na proporção em que eu crescia, a favela crescia junto. As coisas foram mudando, os valores foram se perdendo, enquanto outros foram criados. Antes, as pessoas não fechavam as portas quando alguém chamava no portão. Dizia-se: “pode entrar que a porta está aberta”. A comida era a comida de todos. Havia divisão e uma solidariedade quase romântica. Tínhamos Folia de Reis, festas de São João, Santo Antonio e São Jorge, o meu santo predileto. Ele era diferente dos outros, tinha cavalo, armadura e lança. Vómaria, dizia que ele morava na Lua, onde foi matar o dragão.
Seu Coelho tinha esse apelido por causa dos seus dentes grandes fora da boca e dos seus olhos meio rasgados. Todo ano, após desmontar o presépio que ficava perto do campo de futebol, saía com a Folia de Reis percorrendo todas as casas. A festa era acompanhada por um bando de gente, principalmente as crianças. Zefa fazia os doces mais gostosos do mundo, cocada branca e preta, cuscuz branco e amarelo, canjica, arroz doce... Ah! Que saudades dessas lembranças do sabor e do som da minha infância...
Já não sinto as pernas e minha boca está seca, o silêncio é ensurdecedor e angustia. Eu era um morto-vivo, estou me tornando agora um vivo-morto, meus olhos continuam bem abertos, enquanto a noite cresce.
Hoje, moro em uma comunidade, um bairro, onde as meninas são transformadas em mulheres antes dos treze anos, como a neta do Coelho, que foi violentada por ter as pernas torneadas e a bunda cheia e rígida. O coitado, por ter ido à polícia foi obrigado se mudar, deixando a menina com o seu algoz, homem de confiança do Piranha, um dos traficantes mais importantes do estado.
Zefa, preferiu voltar para o Norte. Sua filha já era uma bela rapariga como ela mesma dizia. Seu marido caíra no mundo há anos e nunca mais ela teve notícias suas. Ao menos lá ela poderia tentar recomeçar, afinal já tinha uma profissão, aprendeu a costurar, tinha duas máquinas de costura industrial. Foi ela quem me colocou o apelido de Baiano. Eu gostava de raspar o coco agarrado nas cascas que ela ralava para fazer os doces.
“Quem gosta de coco é Baiano, sabe menino”.
“Meu nome é Jorge!”.
“Pois é Jorge, seu nome agora é Baiano – falou entre gargalhadas – “
Nunca mais consegui me livrar do apelido. Até Vómaria, que sabia da minha raiva de ser chamado assim, quando estava zangada comigo, chamava pelo apelido.
Aos poucos, quase sem sentir, tudo mudou. Cresci, entrei para a faculdade e comecei a trabalhar para pagar os estudos e cuidar de minha vó. Não foi mole. O dinheiro não dava, minha vó ajudava.
Conforme progredia nos estudos, via o Piranha aumentar seus territórios. Fazia jus ao seu apelido, colocado quando criança porque ele comia tudo, não rejeitava nada. Comia com tanta voracidade que parecia ser aquele alimento o último que comeria na vida.
Com o crescimento do seu poder, a associação de moradores deixou de ter o caráter de reivindicar as demandas – palavra nova, que passou a ser muito usada – da comunidade. Seus representantes passaram a ter preocupação única com a política, transformando a comunidade em área eleitoral a serviço dos políticos e do tráfico. Passamos a viver entre estes dois poderes paralelos. Não éramos somente excluídos, éramos referência do que não se deve ser. Passaram a nos culpar pelas mazelas da sociedade.
Deixei de ser um menino, era um homem, e era necessário agir como tal. Formado em História, não conseguia colégios para dar aula, afinal, estava marcado pela origem. Isso me levou a pensar: “Por que não virar o jogo?”, “Mostrar que existe diferença entre o oficial e o real, que existe saída. Que podemos transformar a raiva em combustível para chegarmos às mudanças; contradizer o senso-comum e reduzi-lo a nada... Mostrar que seremos julgados pelo esforço que fazemos, para ajudar a domar a selvageria humana para o mundo ser melhor. Somente nos organizando poderíamos desorganizar...” .
Meus braços estão mortos, o ar pesa ao entrar nos pulmões. Ajeito a cabeça para que meus olhos vejam mais longe através da noite.
“Qual é, Baiano!”
“Oi, Piranha, tudo bem?“ – nunca havia visto tantos tipos de armas como aquelas que ele carregava penduradas pelo corpo. Fez-me lembrar um cangaceiro. Por dentro, ri da comparação.
“Vou indo parceiro. Tô sabendo que você tá montando uma escola aqui na área...”
“É verdade, mas não é uma escola. É um lugar que serve como centro de discussão com o objetivo de ensinar novas qualificações profissionais, inserir os moradores no mercado de trabalho, dar cursos.... – quanto mais eu falava mais Piranha ouvia. Fiquei surpreso com a sua atenção e o seu interesse até quando falei que era preciso mudar a visão de que os moradores da favela, principalmente os jovens, eram criminosos em potencial, somente porque estão mais próximos do tráfico. Ele ouvia tudo com atenção –. Viu a diferença?”
“Sim, acho que sim“.
Notei que ele estava meio atordoado e ainda absorvia as minhas palavras.
“Outra coisa é o conceito de que se a criança, o jovem e o adolescente não estão envolvidos em uma atividade cultural dentro da favela, com certeza serão novos marginais e irão ameaçar a sociedade. Como se fora destas coisas só resta-se a criminalidade.”
“Sabe que eu não tinha pensado desta forma Baiano. Para a polícia nós somos um meio de ganhar um dinheiro mole.”
“Isso mesmo, Piranha”
“Até nas armas que eles vêm aqui em cima vender pra nós...”
Sorri para o meu amigo que me sorriu de volta, feliz por ter mostrado que não era nenhum ignorante como as pessoas e até mesmo eu supunha.
“Mas tome cuidado. Baiano, existem pessoas que não estão muito felizes com este seu trabalho.”
“É mesmo ?“ – Achei engraçado, como seu eu é que estivesse a margem –
“Você sabe melhor do que eu: para eles é interessante que o povo da favela continue na ignorância.”
“Sei, sim, Piranha. A pobreza é necessária para se manter o poder de alguns.”
“Mesmo eu, só serei o traficante que sou enquanto interessar a alguém. Quando não servir mais, é vala, neguinho. Página de jornal que vai embrulhar o peixe na feira no dia seguinte.”
“E por que você não sai ?”
“Agora só morto. Sei muito meu amigo... Tchau, Baiano. Segura a tua onda...”
Fiquei realmente encantado com a conversa que tive com Piranha, com a visão do mundo que o cerca. Contou-me sobre a neta do Coelho, ela havia se mudado da favela com o marido. Foi atrás do avô. A menina convenceu o rapaz a largar o tráfico, voltar a estudar e trabalhar. Eles nunca mais poderão voltar à comunidade. Piranha tem um nome a zelar.
O trabalho de política preventiva que iniciamos já estava dando frutos. As pessoas se reconheciam como cidadãos de seus direitos. A manipulação havia acabado, assim como os interesses pessoais. As mulheres já sabiam dizer não às violências sofridas pelos maridos, diminuiu assustadoramente a gravidez entre as jovens e o consumo de drogas era feito pelas pessoas que vinham do asfalto. Quem financiava a violência não era o morador da comunidade, mas o poder público teimava em continuar nos rotulando.
A polícia continuava tentando nos diminuir, acusando-nos de proteger os traficantes, mas nós sabemos quem nós somos, nossa identidade está criada e deste modo vimos desconstruindo a imagem que nos impuseram. A comunidade começou a ganhar investimentos, empresas começavam a instalar-se a sua volta, lojas, lanchonetes de foods, bancos, etc...., a música que nasce dentro da comunidade ganha a rua, o Funk e o Hip-Hop falam da realidade dos que não tinham voz.
A voz é ouvida e com certeza incomodou e continuará incomodando. A voz agora é um coral cantando e ecoando sobre está terra; vou pensando, meu pensamento é interrompido por barulhos que não consigo identificar inicialmente, mas sinto as costas queimarem, viro-me e vejo vultos negros como a noite. Os brilhos que os barulhos provocam tocam meu corpo e a brancura da minha camisa mancha o sangue vermelho que nasce do meu corpo. Como um guerreiro tento apoiar-me em uma lança imaginária e sinto meu corpo tombar, caindo como se fosse da sela do cavalo... Minha cabeça está pesada ... meu corpo está frio ... vejo luz na escuridão da noite....
“O que fizeram a você meu menino?”
“Vómaria !.”
Aglomeram-se pessoas em volta da velha senhora que abraça o corpo como se fosse uma criança de colo. Vários olhos curiosos e outros incrédulos observam.
“Meu menino, Baianinho da vó, a ajuda já vem...” – as lágrimas caem pelo rosto de Vómaria .
“Meu nome é Jorge, Vó, estou vendo a Lua. Vó, eu enfrentei o dragão....”
Sua cabeça repousou sobre o colo da velha parteira. Os olhos fecharam-se, mas o sorriso permaneceu.

domingo, 3 de junho de 2007

Artificial Natureza


Luiz Carlos Sá

Verão de quarenta graus na Cidade Maravilhosa. Como sempre, praia cheia, corpos bronzeados e muito bem cuidados. Cada detalhe bem trabalhado para ser exibido na vitrine do calçadão.
Os dois amigos ocupavam sempre a mesma mesa naquele bar da orla. Admiravam os corpos esbelto, protegidos por minúsculos pedaços de pano, quando surgiu uma forma perfeita caminhando na direção do bar, chamando a atenção de todos por onde pisava. Cabelos cor de ouro, que causavam inveja aos raios do sol, sua pele trazia o bronze que nem Salomão conseguiu para ornar as colunas de seu templo. O corpo com certeza serviu de molde para quem fez a Vênus. O calor ficou mais acentuado e o verão tornou-se mais verão com a presença daquele corpo que desfilava entre a praia e o calçadão.
Os amigos engoliam o chope como o enfartado o remédio para o coração, e foi entre um copo e outro que um deles chamou a atenção para o par de seios daquele corpo. Comentou que aquilo não era natural. Somente poderia ser de silicone; esculpido em alguma mesa de cirurgia, por sinal muito bem feito, uma verdadeira obra de arte.
O outro riu e falou que o parceiro nada entendia de mulher. Achando que o outro queria diminuí-lo, ele quis saber por que ele achava que aqueles seios eram naturais.
- Ora; respondeu seu interlocutor; qual mulher esclarecida, nos dias de hoje, usaria este artifício, sabedora dos vários perigos que esse tipo de prótese pode acarretar. Todos os dias os jornais noticiam acidentes que ocorrem com os silicones implantados nos seios; casos de pessoas que ficaram cegas, sobre cadeira de rodas, que tiveram parte de seu corpo paralisado; atrofias nas partes genitais ou que perderam totalmente a sensibilidade para alcançar o orgasmo.
Fez uma pausa para pedir ao garçom mais dois chopes e uma porção de tira-gosto. Assim que foi municiado, voltou a discursar.
- Pois vou lhe contar que tudo isso que estou falando não é de ouvir falar. Me baseio nos fatos que acompanhei pela imprensa e o marido da prima da irmã do cunhado de meu irmão é médico, que nos relatou diversos casos, inclusive o que aconteceu com a irmã de um amigo seu: uma dessas bolsas tinha um micro furo e o líquido foi vazando e penetrando em sua corrente sangüínea, acarretando sua perda de visão e afetou sua fala. Hoje, ela não só está arrependida, o que é mais que normal, como acha que não valeu o preço para estar bonita como as mulheres da televisão e esses modelos que vivem aparecendo nas revistas.
O amigo ouvia tudo atentamente, olhando para os olhos do outro.
- Pelo que vejo você é contra o uso do silicone.
- Claro! Respondeu amigo.
- O que você me diz das milhares de mulheres que, por terem seios pequenos em relação ao corpo que possuem, fazem horas de análise, gastando rios de dinheiro nos divãs, para aceitar o que a natureza lhes deu. Que têm vergonha de despir-se na frente do homem que gostam, fingindo não ver seus amados olharem os seios fartos que desfilam diante de seus olhos. Que têm vergonha por não poder usar qualquer tipo de roupa; ver toda propaganda voltada para os seios fartos, volumosos, tenros e macios feito peito do peru assado no Natal. Você já viu os biquínis e sutiãs expostos nas lojas de departamento feminino ou nas lojas voltadas para este segmento? Com certeza que não. Pois eu vou te falar por experiência, pois já fui casado com uma mulher de seios pequenos, e sei o quanto eles contribuíram para minha separação, por ela se achar inferior às outras. Cansei de ter que comprar sutiã, com ela, na seção infantil das lojas, pois era o único lugar onde achávamos o seu tamanho. À noite, fazer amor com a luz acessa era proibido. Acho que estou muito bem qualificado para falar sobre seios, peitos, mamas ou tetas.
Porém, eles que estavam voltados para suas defesas a respeito do natural ou artificial, quando lembraram do objeto de sua discussão, voltaram os olhos para aquela forma perfeita e a viram entrar no banheiro masculino. Olharam-se, pediram mais dois chopes, e voltaram os olhos para a praia.
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